segunda-feira, 13 de junho de 2011

Domingo de abastecer

Era domingo.


A tarde já ia mostrando sinais de cansaço. Eu seguia prum lugar qualquer, com a pressa que tanto me tem sufocado nos últimos, sei lá, desde que me lembro. Já faz tanto tempo que deixei este sentimento maldito de urgência invadir meu dia-a-dia que já nem sei quando foi que começou.

O indicador de gasolina me provocava do painel, ameaçando sumir mostrador abaixo e me deixar na mão. Já havia pensado antes; vou parar no posto logo antes da ponte. O preço está bom, e está sempre vazio. Que é pra não perder tempo, nem dinheiro. Afinal,..


O calor dos raios oblíquos do sol ainda consolavam o rosto do vento gelado de começo de inverno. O dia, que começara com seus 5 graus, prometia menos ainda quando a noite de céu limpo de cidade, sem nuvens nem estrelas, chegasse.


Parei o carro e entreguei a chave pro frentista, respondendo à pergunta de uma só palavra simplesmente repetindo-a: "completa", enquanto prestava atenção em alguma coisa inútil na tela do celular. Agora percebo o quanto um "boa tarde" poderia ter feito daquela tarde de fato melhor. De repente encará-lo nos olhos enquanto ele servia mais uma das incontáveis doses de combustível a outro sedento automóvel teria o feito sentir assim, mais importante. Mas o vício de estar conectado me transformou no cara sem rosto, e eu fui apenas mais um que pagou pelo serviço e deu no pé.


Até aqui, reconheço que teci uma história escura, amarga. Mas este ponto, aqui onde a linha parada encontra minha lembrança em movimento, é aquele momento em que a mesa vira; é a falta aos 48 do segundo tempo; é a água gelada no rosto logo cedo; é o rosto conhecido quando perdido na multitude de rostos sem face.

Ainda com o celular na mão, e o rádio tocando uma música do mp3 player, desci do carro e fui em direção ao caixa. O posto parecia estranhamente deserto, olhando em volta vi que estava, realmente, vazio. Éramos quatro: eu, o frentista, um menino enchendo os pneus de uma velha bicicleta rosa, e (muito provavelmente, pensei) alguém cuidando do caixa.

Quando passei pela porta de vidro, notei a presença de uma moça no caixa. Era difícil dizer quantos anos tinha, porque a sua timidez era tamanha que sequer se comportava como alguém de alguma idade; não quicava, agitada, como adolescente, nem resmungava como velho, nem encarava como adulto impaciente; apenas se escondia do mundo, do jeito que dava. Seu olhar em nenhum momento conseguiu reunir forças pra se erguer do balcão de onde subexistia sua figura peculiar. Seu olhar passeava por linhas que meu olhar desconhecia; tentei segui-lo, mas ele trilhava caminhos caóticos, tortuosos, o olhar por detrás do balcão.


Foi logo perguntando, numa voz rouca, enquanto encarava um de meus ombros: "bomba dois?".


Isso, respondi. Vi em cima do balcão uma latinha de balas de canela que eu costumava comer há algum tempo, ainda quando morava na Austrália. Perguntei, quanto custa? Ela abriu um sorriso, dos mais desalinhadamente belos que já vi, e me surpreendeu com as frases indignadas: "seis e cinquenta! só porque tem esses nhénhénhé tudo, aí. mas se for ver, nem tem quase nada de bala aí dentro. é só por causa da latinha". O sorriso seguiu, acompanhado do sol, que nos melhorou um pouco a vida dos dois lados do balcão.


"É..", concordei.


A simplicidade com que ela disse tudo o que disse foi desconcertante. Lá de dentro de toda aquela casca de desconcerto, a moça tinha resumido a inutilidade de tudo que é mais sagrado pra essa geração de doidos de rostos colados na tela cheia de NADA que é a vida online.



Não tem nada dentro.



É só por causa da latinha.







E eu olhei pra ela, e vi a mesma coisa que vejo cada vez que olho prum pardal. É só um pardal.



Mas o pardal, diferente da latinha, tem MUITA coisa dentro.



E a latinha, essa pode até virar casa de pardal um dia. Mas sem pardal, ela é só uma latinha.










"Ele é antes de todas as coisas, e Nele tudo subsiste."



5 comentários:

  1. Awesome, buddie!!! Terrific!!! But, tell me, Is the text based in facts??? or, did you figure everything out? Anyway, it's great!!! Congratulations, Paulo Henrique.

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  2. sabe que eu ainda paso por aqui??

    saudades!!

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  3. Nosso desafio/missão é encher de pardais todas as latas vazias deste mundo....

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  4. Pode ser um pardal, tico-tico, bem-te-vi,quero-quero, urubu... Ou sonho, estrada, horizonte, desafio... Ou simplesmente (?!?) amor.
    Vai faltar passarinho? Não! Mais fácil acabarem as latas...

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  5. Caraca, meu guri.. cada metafora, cada frase bate de maneira diferente os tambores que sao meu coração. Tambem acho incrivel como um evento 'insignificante' torna-se O evento do dia.

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