terça-feira, 19 de junho de 2012

Adeus você, eu hoje vou pro lado de lá

Minha memória não é das mais confiáveis, e dado a quantidade, digamos, modesta de tempo que tenho pra rascunhar este texto, não vou exercitar nenhuma das virtudes de apuração da informação ou citação correta de fontes que nos são empurradas cérebro adentro no curso de jornalismo. Desde já, peço desculpa ao caro leitor, que vai compreender e apreciar o motivo da minha urgência em colocar no papel os últimos fatos.

O Pingo se foi. Morreu, já bem velhinho, o cachorro mais original que eu já conheci. Eu costumava falar pra todo mundo que ele tinha dezenove anos, mas em uma breve conversa com a Iza (minha irmã) há uns tempos atrás, me parece que ficou claro que ele tinha 17 anos. Ou algo assim. O fato é que ele estava bem velhinho, e ultimamente a saúde do pequenino já estavabem debilitada. Convulsões, cegueira e surdez quase absolutas, crises de ausência, caminhar em passo apressado em rodas pela  casa enquanto trombava em tudo por não poder enxergar, o Pinguinho sofreu um belo bocado antes de morrer.

Me lembro muito bem do dia em que eu e minha mãe tramamos de comprar um cachorro. Esperamos meu pai viajar, porque ele não queria saber de bicho em casa na época, e fomos, com a velha Parati verde musgo até uma destas feiras de filhotes cheias de gaiolas e olhares que fazem você querer encher um porta-malas de filhote de cachorro.

Andamos um bocado ao longo da feira. Mais ou menos na metade do caminho, havia uma gaiola com apenas dois pequenos filhotes tricolores de, lia-se na cartolina em cima da gaiola, Fox Paulistinha Tricolor. Uma fêmea, e um macho. O macho era consideravelmente menor, e tinha o focinho quase todo cor-de-rosa. A fêmea parecia saudável, e era mais clara que o macho, que tinha as costas inteiras pretas, patas branquinhas e o rosto bem desenhado em preto e marrom. Minha mãe perguntou o preço dos filhotes. "Duzentos e cinquenta a fêmea, senhora", disse a vendedora casualmente. "E o machinho?", quis saber minha mãe. A moça nos disse que achava melhor não vender o macho, porque ele estava doente, e muito provavelmente iria morrer. Apontou pro focinho rosado dele e disse que tinha alguma coisa a ver com aquilo. Não me lembro bem.

Durante todo o tempo, o machinho nos observava, quase sem mover um músculo. Nem sequer piscava. Os olhos pretos e aguados eram penetrantes. Eu não tirei os olhos dele, tampouco. Minha mãe me pegou pela mão e disse, "vamos andar até o final da feira." Eu a segui, e continuei olhando o pequeno Fox Paulistinha, que virou tanto a cabeça pra olhar a gente ir embora que quase caiu de costas.

Fomos até o final da feira, que consistia em um grande balcão comprido em linha reta. Minha mãe, tendo notado o olhar atento do cachorro, e provavelmente o meu também, me disse, ao fazermos a volta na ponta mais distante da feira: "Se ele encarar a gente, e virar a cabeça daquele jeito de novo, a gente leva ele." Senti uma pontada de ansiedade. Eu tinha 8 anos, e estava doido pra ter um cachorro. E se ele não olhasse? E se a moça não quisesse vender? Eu não sabia disso na época, mas vendedor nenhum se recusa a vender quando o cliente quer comprar. Mas o cachorro podia muito bem não olhar.

Fomos chegando próximos à gaiola dos Fox Paulistinha, e a cena se repetiu, ainda mais intensa. No momento em que ele nos avistou, virou o corpo na nossa direção e não desgrudou os olhos. Seguimos andando, até o ponto em que ele precisou começar a virar a cabeça, e continuou virando, até que parecia fisicamente impossível virar mais sem causar danos à coluna. Mas ele continuou virando. Foi aí que a minha mãe parou de súbito, e caminhou de volta até a gaiola, eu dando pulos por dentro, impressionado com a façanha do cachorro. Ele certamente era melhor vendedor que a moça que o vendeu pra gente, por um preço bem mais baixo, avisando que não devolveria o dinheiro se ele viesse a falecer.

[...]

O Pingo era um cachorro bem agitado. Certamente a maior culpa de ele ter ficado tão estressado foi ter convivido comigo, com meu pai e com minha irmã, nessa ordem. A gente infernizou a vida do coitado dos jeitos mais criativos. Uma das favoritas da família, que foi até registrada em câmera, foi a famosa "tempestade". Eu me deitava em uma rede, esticada de frente pra sacada. Colocava o corpo inteiro sobre ela, e abria a mesma com as pernas, colocando o pingo próximo dos meus pés. Eu me sentava na rede por alguns instantes, e então deixava o peso do corpo cair sobre a rede. Isto fazia com que o outro lado da rede esticasse bem rápido, e arremessasse o cachorro no ar, movimento que eu acompanhava 'cautelosamente', e agarrava o bicho, voando, a caminho da parede atrás de mim.

[...]

O Pingo não sossegava dentro do carro. Ele adorava passear de carro, mas o deleite dele era o nosso inferno. Ele avançava em tudo. Tanto que até chegou um dia em que a gente se cansou, e comprou um daqueles iglus de madeira, ou MDF, ou sei-lá-o-quê. Era um mini-túnel, e tinha três janelas de cada lado. Enfiamos o cachorro lá dentro, e o colocamos no assento do meio no banco de trás. Ouvíamos seus ganidos, suas unhas raspando a madeira, seu declarado desassossego com a nova maneira de viajar. Até que ele ficou um pouco mais calmo, e o barulho amenizou. Esquecemos um pouco do Pingo, até que a minha irmã começou a rir, e quando eu me virei para ver o que tinha acontecido, topei com metade da cabeça do cachorro para fora de uma das janelas, quase completamente roídas pelo rebelde.

[...]

O Pingo, talvez por ter recebido uma lavagem cerebral, ou talvez por preferência pessoal, adorava Los Hermanos. Era colocar um disco do Los Hermanos pra tocar, que em questão de minutos ele vinha se sentar perto do rádio. Às vezes mesmo com o violão, quando eu e a Iza tocávamos alguma música deles, o cachorro vinha logo pra perto, e ficava. Impressionante. Certa vez, ele voltou bem fraco de um hotel para cães, há mais ou menos um ano atrás. Não comia há dias, e estava esquálido e completamente fraco. Tomava água, e vomitava logo em seguida. Minha mãe o colocou na bacia onde dormia, e já foi me avisando, "se prepare, porque pode ser que ele se vá ainda hoje." Meu coração se partiu, e me lembrei do único agrado que dava pra providenciar, já que ele não conseguia comer. Puxei um rádio do lado da cama dele, e coloquei um disco do Los Hermanos pra tocar. E ele levantou aquelas orelhas pontudas e elegantes dele, em reconhecimento. E foi melhorando, melhorando, até que estava, dias mais tarde, pulando por cima dos sofás.

Numa tarde que passei na casa dos meus pais, sentei no sofá e peguei o violão. A cuíca estava pela casa,  e o Pingo, deitado em sua bacia, dormindo ao sol. Comecei os primeiros acordes de "De onde vem a calma", e me distraí, cantando. Até que senti algo macio e morno encostar no meu pé descalço. Era o Pingo, que havia literalmente sentado no meu pé. Minha mãe me olhou da cozinha, e perguntou, "será que ele reconheceu Los Hermanos?" Incrédulo, parei de tocar, e ele foi-se logo embora. Toquei mais algumas, e depois arrisquei "Cara Estranho". Foi batata. Alguns segundos depois, e lá estava ele de novo, sentado aos meus pés.

[...]

Daniel Martini

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